Veludo Azul (1986)

01/11/2016

Blue Velvet

Drama ‧ Mistério ‧ Noir ‧ 2h ‧ 1986 ‧ David Lynch


O FIM DO SONHO AMERICANO 


Céu azul, tulipas coloridas, nuvens e cercas cândidas, bombeiros que fazem tchau com a mão e uma fila de criancinhas que se encaminham para a escola. Eis Lumberton, Noth Carolina: a pequena e perfeita cidade norte-americana, em cuja representação cinematográfica não falta nada, a não ser um mínimo de verdade.

Um morador encontra dificuldades com a mangueira para regar o jardim quando, de repente, desaba no chão, vítima de uma parada cardíaca. Eis o terror: a câmera desce até se adentrar na grama, fuçando as sombras, deparando-se com um movimento obscuro, orgiástico, produzido por uma massa informe de insetos. 

A nostálgica musica de Bobby Vinton deixa espaço a um som incompreensível.

Jeffrey Beaumont retorna à sua cidade natal devido aos problemas de saúde do pai, o homem que passara mal no começo do filme. De volta do hospital, vagando em um terreno baldio, o protagonista descobre uma orelha humana no meio do mato: outra vez, a superfície de uma aparente tranqüilidade agita-se pelos horrores que borbulham silenciosos debaixo dela. 
Será a partir dessa descoberta, assustadora e tentadora como um pecado, que o diretor David Lynch moldará um dos roteiros mais significativos da história do cinema. Seu jovem alter ego, assumindo o papel de investigador, decide vasculhar o mundo subterrâneo situado à margem de Lumberton, à beira da racionalidade humana.

É nesse contexto que se apresentam Sandy Williams, filha do detetive que se ocupa do caso da orelha mutilada, e Dorothy Vallens, cantora envolvida com uma gangue de criminosos. A primeira surge da escuridão, como um anjo delicado cujo amor por Jeffrey se desmanchará em detrimento da sexualidade da segunda, uma femme fatale iluminada pelos holofotes do Slow Club.
O azul dos vestidos elegantes e das lâmpadas de néon, cor do vício, se mescla ao vermelho das cortinas e das chamas de uma vela, cor da paixão, descrevendo as tonalidades predominantes dessa descida ao inferno.

De degrau em degrau, desvenda-se um pouco do mistério, enquanto Jeffrey, falaz perante sua insana curiosidade, divide-se em pulsões obscuras e em vestígios da própria moralidade.

De patamar em patamar, a perversão, ainda incipiente em nosso anti-herói, concretiza-se na figura de Frank Booth, um sádico vilão que acabará esbarrando-se em Jeffrey no violento desfecho da película.

Criador de dédalos oníricos da sétima arte, escultor de deformações visuais, David Lynch nos conta mentiras para tratar a verdade, para falar do nosso inconsciente. Assim, os elementos do noir clássico como o mistério, a mulher em perigo e o detetive se confundem com as peças de um quebra-cabeça surreal, como uma orelha decepada e um monte de insetos nojentos. 
Mas o que torna este filme uma das obras mais importantes de sua década?

Filho legítimo da rebeldia indomável de "Terra de Ninguém" (1973), herdeiro da inconformidade sexual de "A Primeira Noite de um Homem" (1967), "Veludo Azul" (1986) possui o vigor das melhores obras da Nova Hollywood, combinado à inovação artística de "Um cão andaluz" (1929).

Que seja a pupila cortada por Buñuel ou a orelha amputada por Lynch, trata-se sempre de uma revolução, de receptores da realidade que necessitam ser novamente descobertos.
O talento do diretor de Missoula reside na capacidade de despir o espectador de suas máscaras, atingindo os meandros da psiquê com a intensidade de um pesadelo. 
De todas as rachaduras, buracos e fissuras em que as câmeras de Lynch gostam de mergulhar, certamente a brecha mais importante, em que devemos pôr a nossa atenção, é aquela que se abre na índole de Jeffrey. Quando as luzes da sala se acendem, uma pergunta nos atormenta: por quê?

Ou melhor, o que levou um bom garoto a cometer violência sexual e homicídio?
Para Frank Booth há uma explicação óbvia: é um sádico. Isso não nos assusta. Na sociedade do controle em que vivemos, há todo um sistema de vigilância para os sociopatas e psicopatas sejam identificados e, então, condenados à prisão e ao isolamento.

Mas o que dizer a respeito de um rapaz amável como Jeffrey? Não há filtros para reter pessoas comuns, assim como não se deveria ceder a um instinto violento sem nenhum motivo. <<Você é como eu>> diz Frank à Jeffrey no fim do joyride.

Mas enfim, como pessoas boas se tornam más?

Talvez a razão esteja nas entrelinhas do filme, naquela sutil mas cruel crítica ao estilo de vida reaganiano. Como Travis Bickle em "Taxi Driver" (1976), Jeffrey está enjoado da fachada em technicolor dos EUA, está farto de morrer lentamente num meloso melodrama de Douglas Sirk.

É o tédio que o envenena.

Uma nota dissonante interrompe a trilha sonora. A tensão de um encontro erótico se dissolve. Alguém bate à porta. Dorothy esconde o seu novo amante no armário. Jeffrey agora está no escuro, o rosto cortado por lâminas de luz e sombra. Arquejamos junto ao nosso detetive pervertido enquanto ele observa um estupro através das fendas do móvel. Como acontecia em "Janela Indiscreta" (1954) de Hitchcock, a linha que separa personagem e espectador some e, de repente, nos tornamos mórbidos voyeurs. Presenciamos impotentes ou gozamos da violência?

A câmera foca nos lábios de Dorothy, perdidos entre prazer e dor. Basta que ela pronuncie as palavras certas e logo o mal tomará conta de nós.

Não há por onde escapar.

As cenas desfilam diante dos olhos incrédulos do público. O sangue se acumula.

<<Onde está o meu sonho?>> soluça Sandy em lágrimas, juntando os estilhaços de uma inocência despedaçada, ao descobrir a traição do jovem Beaumont.

<<Nos sonhos você é minha o tempo todo>> canta a fita de Roy Orbison antes de ser interrompida por Frank Booth, visivelmente incomodado pela letra da canção.

À medida que seus personagens se deparam com a vacuidade das próprias ambições e fantasias, Lynch nos sussurra uma terrível verdade: o sonho americano já se tornou o pior dos pesadelos.

                                                                                               DINO LUCAS GALEAZZI

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