Veludo Azul (1986)
Blue Velvet
Drama ‧ Mistério ‧ Noir ‧ 2h ‧ 1986 ‧ David Lynch
O FIM DO SONHO AMERICANO
Céu
azul, tulipas coloridas, nuvens e cercas cândidas, bombeiros que fazem tchau
com a mão e uma fila de criancinhas que se encaminham para a escola. Eis
Lumberton, Noth Carolina: a pequena e perfeita cidade norte-americana, em cuja
representação cinematográfica não falta nada, a não ser um mínimo de verdade.
Um morador encontra dificuldades com a mangueira para regar o jardim quando, de
repente, desaba no chão, vítima de uma parada cardíaca. Eis o terror: a câmera
desce até se adentrar na grama, fuçando as sombras, deparando-se com um
movimento obscuro, orgiástico, produzido por uma massa informe de insetos.
De degrau em degrau, desvenda-se um pouco do mistério, enquanto Jeffrey, falaz perante sua insana curiosidade, divide-se em pulsões obscuras e em vestígios da própria moralidade.
De patamar em patamar, a perversão, ainda incipiente em nosso anti-herói, concretiza-se na figura de Frank Booth, um sádico vilão que acabará esbarrando-se em Jeffrey no violento desfecho da película.
Filho legítimo da rebeldia indomável de "Terra de Ninguém" (1973), herdeiro da inconformidade sexual de "A Primeira Noite de um Homem" (1967), "Veludo Azul" (1986) possui o vigor das melhores obras da Nova Hollywood, combinado à inovação artística de "Um cão andaluz" (1929).
Mas o que dizer a respeito de um rapaz amável como Jeffrey? Não há filtros para reter pessoas comuns, assim como não se deveria ceder a um instinto violento sem nenhum motivo. <<Você é como eu>> diz Frank à Jeffrey no fim do joyride.
Mas enfim, como pessoas boas se tornam más?
Talvez a razão esteja nas entrelinhas do filme, naquela sutil mas cruel crítica ao estilo de vida reaganiano. Como Travis Bickle em "Taxi Driver" (1976), Jeffrey está enjoado da fachada em technicolor dos EUA, está farto de morrer lentamente num meloso melodrama de Douglas Sirk.
É o tédio que o envenena.
Uma nota dissonante interrompe a trilha sonora. A tensão de um encontro erótico se dissolve. Alguém bate à porta. Dorothy esconde o seu novo amante no armário. Jeffrey agora está no escuro, o rosto cortado por lâminas de luz e sombra. Arquejamos junto ao nosso detetive pervertido enquanto ele observa um estupro através das fendas do móvel. Como acontecia em "Janela Indiscreta" (1954) de Hitchcock, a linha que separa personagem e espectador some e, de repente, nos tornamos mórbidos voyeurs. Presenciamos impotentes ou gozamos da violência?
A câmera foca nos lábios de Dorothy, perdidos entre prazer e dor. Basta que ela pronuncie as palavras certas e logo o mal tomará conta de nós.
Não há por onde escapar.
As cenas desfilam diante dos olhos incrédulos do público. O sangue se acumula.
<<Onde está o meu sonho?>> soluça Sandy em lágrimas, juntando os estilhaços de uma inocência despedaçada, ao descobrir a traição do jovem Beaumont.
<<Nos sonhos você é minha o tempo todo>> canta a fita de Roy Orbison antes de ser interrompida por Frank Booth, visivelmente incomodado pela letra da canção.
À medida que seus personagens se deparam com a vacuidade das próprias ambições e fantasias, Lynch nos sussurra uma terrível verdade: o sonho americano já se tornou o pior dos pesadelos.
DINO LUCAS GALEAZZI