RAÍZES PERFEITAS

24/01/2017

Já faz um tempo que trabalho nesse prédio, como porteiro. Mas, pelo visto, não o suficiente para poder afirmar que conheço cada pessoa que mora aqui.

Foi necessário ter uma festa bem na minha cara, no playground, para que eu o visse pela primeira vez: sim, ele, Aiá em pessoa.

Aiá, nome curto, tempo de sucesso mais curto ainda. Sua presença nas mídias foi uma coisa de nada, uma piada suja no meio de uma missa, portanto muitos de vocês não devem se lembrar dele. Bom, eu lembro.

Aiá chegou a ter seus quinze minutos de glória no Fantástico; suas dimensões físicas extraordinariamente minúsculas preencheram as telas de quem assistia o Mais Você numa manhã de quinta-feira; e, salvo engano, Luciano Huck o encaixou entre um quadro e outro de seu programa.

Um espaço na tevê é uma janela para o mundo. Janela que, no caso do baixinho, fechou-se com a mesma violência com que fora escancarada.

A tribo à qual Aiá pertencia tinha um nome esquisito e uma particularidade física mais esquisita ainda. O membro mais alto da tribo das pernas curtas, como então fora batizada por nós telespectadores, não chegava ao metro e trinta de altura. Aiá, em particular, tinha um metro e uma besteira, mas, por algum motivo, fora o único a capturar a atenção das câmeras naquele fatídico dia em que a rede Globo, enquanto representante do nosso país, filmava o primeiro contato entre o mundo civilizado e uma das poucas populações autóctone da Amazônia que ainda não havia sido descoberta pelo homem.

Não sou um perito no assunto. Na verdade, não sou perito em porra nenhuma. Pra ser porteiro, nem de portas você deve ser experto. Enfim, o que estou querendo dizer é que não entendo nada sobre genética, mas se você googlar por aí, certamente encontrará algo a respeito da tribo de Aiá, de como, por um acaso, o DNA desses índios fez com que suas pernas não se expressassem por completo. Sim, diziam bem isso: expressar.

Lembro que todos os índios das pernas curtas se afastavam das câmeras, com medo, esgueirando-se dos enquadramentos, caminhando como pingüins assustados. Todos, menos Aiá. Apesar dos dez centímetros de tíbia e fíbula o atrapalhando em tal proeza, Aiá destacava-se por seu jeito harmonioso de andar. Ao ser questionado pelo interprete da expedição sobre sua capacidade de correr, Aiá utilizou-se de sua melhor isca para chamar a atenção dos cinegrafistas, uma risada gutural tão assustadora quanto peculiar, e, em seguida, fisgou o mundo inteiro com uma corrida comicamente desengonçada. Parecia um peru histérico na véspera de Natal.

A cada circulo descrito em volta do grupo de repórteres, Aiá afastava-se de seu vilarejo e de suas tradições seculares, transmitidas de anão para anão, de pai para filho, aproximando-se cada vez mais do Brasil, do mundo civilizado.

Não sei dizer como, não sei dizer quando, só sei dizer que ele veio parar aqui, ao lado do Faustão e de Silvio Santos. Nem deu tempo para ele sumir dos trend topics do Twitter, que Aiá reapareceu dando um rolê pelos estúdios das maiores emissoras do país. No começo era sempre acompanhado por um tradutor, mais grudado nele que sua própria sombra. Em seguida, o baixinho aprendeu a se virar sozinho, sabendo dar entrevistas antes mesmo de cuspir discursos num português esquizofrênico. Não tinha uma única palavra em sua fala que saísse com os acentos nas vogais apropriadas.

Por um tempo, Aiá foi o dia a dia de nossas conversas, o boca a boca da mídia e do povo. Teve até uma piada a respeito: num mesmo avião prestes a cair tinham um francês, um chinês e Aiá. Bom, Aiá era a graça da piada. Mas eu não sei contar piadas.

Por algum motivo, tudo aquilo que capturava o real despertou o interesse em Aiá, em particular a fotografia. Ele mesmo dizia-se encantado com esse tipo de tecnologia, com a possibilidade de imprimir a vida, assim como ela aparece aos nossos olhos, numa folha.

Regurgitando palavras em seu dialeto único, Aiá chegou a declarar, certa vez, que tirar uma foto era como roubar um pedacinho de vida para si mesmo.

Pouco antes das luzes da ribalta se desligarem no meio do terceiro ato de sua vida, Aiá chegou a ver seu trabalho exposto em algumas galerias de arte da capital e em alguns sites da web.

Posso ser repetitivo, mas vale a pena ressaltar que eu não entendo de nada, nada mesmo. Mas posso dizer que algumas das fotos de Aiá, se não bonitas, são, pelo menos, interessantes.

Há uma sessão de fotos chamada, simplesmente, de "Pernas". São imagens confusas, borradas, de pessoas andando, caminhando, correndo, parando, tudo pela perspectiva de um anão. Os críticos recorreram a palavras rebuscadas para descrever tudo isso. Eu achei legal. Tem pernas para todo lado. Pernas enfiadas em calças chiques, retas como flechas que apontam para o chão. Pernas lindas e lisas, derramando-se para fora de uma saia colorida. Pernas fortes, torneadas, borrifadas de suor por via da corrida. Pernas cabeludas que terminam num par de sapatos esportivos. E por aí vai.

Em outra, um grupo de pessoas degoladas atravessa a rua, indo de um lado para outro do enquadramento. Perguntaram a Aiá o porquê dele não ter levantado a câmera na hora da foto, e ele respondeu, em seu português deformado, que não teria sido sincero, porque ele só via as pessoas daquele jeito: decapitadas.

Mais interessante ainda é a foto do menino de rua, um corpo alto quanto o dele. Pela imagem, você juraria que aquele garoto, de braços abertos, olhos tristes, rosto direcionado ao céu, está, sem sombra de dúvida, orando. Aí chega a descrição da foto e você descobre que João, o sujeito da fotografia, pouco antes do click, jogara sua bola de futebol pra cima. Portanto, o que ele está esperando não é um sinal divino, mas sim que a bola retorne em suas mãos. Só isso.

Logo depois, aviões de linha começaram a cair do céu feito granizo, e Aiá despencou no báratro do esquecimento. Teve também o escândalo de corrupção na política, por não falar da tragédia no interior do país, a mãe que matou o marido, a cunhada e seus nove filhos, para transformá-los em barras de sabonete.

Estava precisando de dinheiro, ela disse.

E de se lavar, eu digo.

Enfim, as manchetes do dia seguinte existem para que possamos esquecer aquelas do dia anterior. E, diga-se de passagem, fazem isso muito bem.

Aos poucos, fui me esquecendo de Aiá. Num dia some o nariz, noutro é a vez das orelhas, aí troca-se a cor e a forma dos olhos por outras, e por aí vai. Na memória resta o equivalente de uma foto 3x4 suja, a tinta se derretendo pelo calor.

Mas aí, sondando a festa do prédio com a devida distância, ouço aquela risada e tudo retorna em seu lugar: nariz achatado, orelhas de abano, olhos amendoados da cor de uma jabuticaba.

Viro-me e ele está lá, sentado à mesa principal, servindo-se de vinho branco, tagarelando num português razoável com um punhado de vizinhos.

O bisturi faz melhorias, mas não milagres. Uma saldada aqui e uma afunilada ali podem enganar os outros, bêbados, distraídos, mas não a mim.

- A história é a seguinte - diz ele - no avião temos um francês, um chinês e um índio tupi.

Percebo um detalhe. Na verdade, é o detalhe dos detalhes: a altura.

Esse cara é quase um Tom Cruise, com seu metro e meio de altura. É baixo, mas não chega à baixeza de Aiá.

Alguém me chama pelo nome, diz que tem alguém interfonando, mas eu não dou a mínima. Não presto muito como porteiro. Estou pensando naquele artigo que li semana retrasada, falava de duplos, de cópias: cada homem na terra possui um sósia que vive em algum outro lugar do planeta.

- Só há um pára-quedas para os três - continua ele e, a esse ponto, cruza as pernas.

Alguém me grita. Outro me xinga.

De onde estou, consigo ver o pedaço de metal da prótese brilhar entre a borda da calça e o mocassim.

Os amigos de Aiá estão rindo antes mesmo de a piada chegar ao fim. Ele levanta a mão, simulando um avião prestes a cair na mesa.

Alguém pega no meu braço com força e começa a me sacudir.

A mão bate na mesa. As taças tinem. As bocas riem.

Vejo Aiá se esticar todo, as pernas retas por debaixo da mesa. Pedaços de tubo, cem por cento de titânio, saindo de suas calças, enfiando-se nos sapatos, cravando-se no solo, como raízes perfeitas, futurísticas.

- Vá trabalhar, porteiro! - berra quem segura.

- Tem gente querendo entrar - se esgoela alguém.

Eu me viro e digo: - E sempre terá, senhor. Sempre terá.


                                                                                                                                     Dino Lucas Galeazzi

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