Paris, Texas (1982)

17/11/2016

Paris, Taxas

Drama ‧ 2h 27m ‧ 1982 ‧ Wim Wenders


UM ANTI-ROAD MOVIE


Paris. No Texas.

"Paris, Texas", a película de 1982, não se limita a confundir o espectador com um título que nos faz pensar a um deslocamento da capital francesa para o solo americano, pois a sensação de desnorteamento se dá ao longo de toda a obra, desde a primeira cena, com a tomada de um deserto da fronteira estadunidense, até à ultima, com um carro que percorre uma rua anônima, mergulhando nas entranhas da noite.

Desde seus primeiros passos no mundo da sétima arte, Wim Wenders, diretor da obra em questão, sempre teve um olhar voltado para fora, e uma câmera apontada para a linha do horizonte. Lá onde o colega Rainer Werner Fassbinder retratava de mulheres em lugares fechados, o Wenders falava, e ainda fala de homens em espaços abertos, e o faz de uma forma diferente de outro expoente do Cinema Novo Alemão, o Werner Herzog. Pois, enquanto este aborda o mesmo tipo de personagem de forma quase mística, pondo-o diante de desafios impossíveis, aquele o faz de forma humana, íntima, e talvez seja por este motivo que um dos leitmotiv de seu trabalho de 1982 sejam os sapatos: os dilacerados do protagonista, ou os que o mesmo encera na casa do irmão, ou ainda os que são postos em ordem acima do muro, etc.

Sapatos, sapatos e mais sapatos, como a exprimir a necessidade do diretor de manter os pés no chão, de evitar grandes alegorias para retratar da pequena realidade urbana, guardando assim as "Asas do desejo" (1987) para o futuro.

Travis é o nome do impenetrável protagonista desse atípico filme de estrada, cuja história surpreende pela sua linearidade, o que não se traduz, todavia, numa menor força poética.

Travis viajara pelo deserto em busca de um lugar: Paris. Não a Paris que todos sonhamos, mas aquela esquecida do condado de Lamar, um enésimo lugar nenhum. O motivo? Um retorno desesperado às origens, ao útero materno, pois foi lá, segundo as palavras dos pais, que ele havia sido concebido.

Um trauma fez com que Travis sumisse da face da Terra por alguns anos, levando-o à beira da sanidade mental e à fronteira dos EUA, onde, após desmaiar num bar, é socorrido pelo seu irmão, que o leva para casa, em California. Lá, Travis encontrará o vestígio mais assustador de seu passado, algo que havia abandonado por não ser forte o suficiente: o filho Hunter. O menino, cópia biologicamente semelhante à mãe, mas também reflexo de uma derrota paterna, põe o protagonista diante de um novo desafio, o de ter que reconstituir o antigo núcleo familiar.

Um roteiro simples à primeira vista, mas que permite ao diretor de documentar a falácia do american dream e de atualizar alguns dos arquétipos dos EUA de Ronald Reagan: um país em transtorno, cada vez mais dilacerado por famílias disfuncionais, que via sua expressão artística predileta, o cinema, mudar formas e conteúdos. Ao horizonte aparecia um novo tipo de cidadão, um indivíduo sem norte diante do cenário mutável da pós-modernidade, perdido como o nosso Travis.

Família. Cinema. Indivíduo.

Três pilares da sociedade americana que começaram a ruir perante as mudanças da década de '80.

Não é a toa que, uma vez ou outra, algumas metáforas made in USA saltam aos olhos do espectador, como a águia, símbolo dos Estados Unidos, que se pousa numa rocha logo na primeiríssima cena, ou a bandeira de estrelas e listras que não há motivo de ser enquadrada pelo binóculo do personagem a não ser, justamente, para nos lembrar onde estamos.

Tais cenas ressaltam também o caráter nostálgico do Wenders, seu regresso às origens, tanto as do Travis, quanto as do cinema americano, seja através de um deserto à la John Ford, seja pelas estradas sem fim que convergem no ponto de fuga, como no mais clássico dos road movies. Mitos imortais que acabaram perecendo com o tempo. O clássico cinema americano morreu com Nicholas Ray, afirmou certa vez o Wim Wenders. E talvez tenha razão.

A saudade pela velha mentira que tanto nos confortava. É isso que move o diretor. É isso que move o Travis até Paris, no primeiro ato, e até a esposa Jane, no segundo ato: como comentará seu irmão ao longo da viagem, o pai dos dois contava aos amigos de ter conhecido a mãe na outra Paris, na Paris francesa, e o falso, aos poucos, tornou-se o vero.

Nessa perspectiva, o filme não é somente uma história de descaminhos e de possíveis reencontros.

"Paris, Texas" é um sinal de alerta sobre a crise da instituição familiar. As dificuldades econômicas do sistema capitalista e os ecos da revolução sexual da década passada são sintetizados na película através de um tenso acerto de contas entre Travis e Jane: a dialética dos dois, perdida entre um jogo de reflexos, toma o lugar do mais clássico mexican standoff.

"Paris, Texas" é um retrato do homem moderno. O caminho sem rumo descrito pelo protagonista é o mesmo que todos nós já enfrentamos -ou teremos de enfrentar - uma vez na vida: trata-se de uma viagem sem retorno, que nos obriga a cortar os laços maternos para podermos amadurecer, assumindo assim as nossas responsabilidades. Um gesto que requer uma coragem ausente tanto em Travis, quanto em uma boa parcela dos homens de seu tempo, homens que abandonaram as próprias famílias.

"Paris, Texas" é um ato de fé na sétima arte. Fazer com que as cenas principais do filme aconteçam em um peep show, lugar em que o prazer se dá pelos olhos, por um lado ressalta o voyeurismo do publico, que sempre fora o motivo fundador do cinema, e pelo outro permite ao Wenders de quebrar a quarta parede, uma vez que a belíssima Jane, interpretada por Nastassja Kinski, fala diretamente na câmera, para com o público, um gesto incrivelmente pós-moderno.

Eis a evolução do cinema. Os anos '80 anunciaram uma mudança em curso na sétima arte, pois será cada vez maior o número de filmes que usarão a metalinguagem para melhor falar sobre a realidade.

"Paris, Texas", como cada obra-prima que se respeite, antecipou aquilo que estava por vir, isto é, uma nova forma de fazer cinema.

                                                                                                   DINO LUCAS CASTRO GALEAZZI

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