O VELHO SUADOR

17/11/2016

Rolou esse troço das palestras na faculdade.

Eu não queria participar, mas os professores sabem ser bastante persuasivos com os alunos, sobretudo quando lhe apontam uma arma chamada reprovação bem no meio da testa.

Vai cair prova sobre isso tudo, disse um. São assuntos que servem para a vida, berrou a outra. Então, aqui estou eu, na fila do bar, aguardando pela dose diária de cafeína.

- Vai querer o quê? - pergunta a moça.

- Uma injeção intravenosa de 300 ml de café preto, - respondo.

- Com ou sem açúcar?

- Sem.

Assim vão as coisas, as pessoas mal te escutam. Na palestra de ontem me apresentei ao ator João Miguel como sendo um assassino profissional, mas ele estava tão distante em sua linha de montagem, feita de autógrafos e selfies, que acabou sorrindo para mim.

O café está servido. Pago trinta centavos, o copinho prestes a se derreter entre os dedos.

Sento-me a uma mesa vazia, em frente à tevê.

É o noticiário do apocalipse.

Uma pessoa originária de um país devastado está dando uma entrevista: perdeu três de suas cinco noivas e doze de seus dezesseis filhos, mas não a fé num futuro melhor.

Um novo reality show levará as câmeras para dentro dos hospitais: o primeiro episódio será sobre os transexuais.

Uma bomba destruiu o palácio do Planalto: não houve mortos, pois não havia políticos trabalhando na hora da explosão.

Num bairro próximo ao meu, os mortos ressuscitaram e devoraram seus familiares num ato de amor.

Abro os olhos, embora não lembre de tê-los fechados.

Não há mais fumaça exalando do café e um senhor está sentado ao meu lado, sinal de que devo ter dormido um bocado. Ou de que ainda estou dormindo.

É desse senhor que quero falar. É um velho daqueles que se tornam cada vez mais rabugento com o passar dos anos. Sua muito, mas somente pelo rosto.

Fala com a mesma animação enferrujada de quem fugiu de um hospício, pois, do nada, me diz seu nome, o da filha e o do filho. Entre o cansaço e o susto, quem manda é o sono, então faço que sim com a cabeça, sem prestar muita atenção.

Confessa de ser bipolar e diz que nada o deixa mais triste do que as pessoas que lhe aconselham ir à igreja. Ele não acredita em Deus.

- Nem eu, senhor, - digo, mas não consigo me focar na conversa. Há algo hipnótico naquela pela molhada, naquela gota de suor próxima a cair do lóbulo da orelha.

O velho me fala do padre Marcelo Rossi, de como Deus não o salva de sua anorexia.

Agora, se aproxima de mim e me sussurra que tem uma teoria. Quero saber disso? Óbvio que sim, vim pra faculdade só pra isso.

- Os crentes são interesseiros, eles só fazem o bem para ter uma vaga no Reino dos Céus.

- É uma boa teoria, - digo, e é verdade. É tão interessante que deixo de pensar no esforço incrível que fazem suas glândulas sudoríparas.

Ele ri e seu riso é assustador. Começo a ter vergonha de quem nos olha, preciso me afastar.

Ele me conta de ter estudado Lacan a vida toda, então pega uma pasta verde, a abre e começa a ler a introdução de seu livro, uma história sobre vampiros. O vejo gotejar a vida pelo rosto. O suor chove em suas páginas, borrando as palavras.

- Não consigo entender o que fiz, - reclama ele, a testa deformada por um zilhão de pérolas transparentes.

Eu rio e meu riso é assustador. Todos no bar estão nos observando, invento uma desculpa e vou ao banheiro.

Lavo a cara na água gelada. Olho-me no espelho e me esbarro numa versão mais jovem do velho: também estou lagrimejando pelos poros.

- Não sou o vampiro de seus sentimentos, não vou sugar a sua solidão, - me digo.

Enquanto enxugo o rosto, penso em voltar à mesa, agradecer pela conversa e ir embora.

- Não vou sugar a sua solidão, - repito.

Mas eis a surpresa da vida: ao sair do banheiro, percebo que o velho sumiu.

Sento-me na cadeira, meio assustado, meio envergonhado.

Onde ele pode ter ido, me pergunto.

Olho para dentro do copinho de plástico, como em busca de uma resposta. Mas não há nada nele, nem o café. Alguém o bebeu.

Pego uma folha de papel e um lápis da mochila e começo a escrever, pois sinto que devo anotar o que aconteceu.

Falo do que vivi, das risadas idênticas, da sensação de ter encontrado alguém que te escuta porque é igual a você, só que com uma idade diferente, uma forma de suar diferente.

Acredito que, um dia, meus olhos secarão que nem os do velho, então irei aprender a chorar pela face.

Convenhamos: todo homem deve se livrar de certos fluídos quando decide despejar seu veneno pelo mundo.

Rolou esse troço das palestras na faculdade, e isso foi o que aprendi.

DINO LUCAS GALEAZZI

04/11/2015

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