O Grande Lebowski (1998)

20/12/2016

The Big Lebowski

Comédia ‧ Mistério ‧ Crime ‧ 1h 57m ‧ 1998 ‧ Joel Coen e Ethan Coen

 ACEITANDO A DERROTA


Entre as inúmeras entrevistas que compõem o documentário monumental de Mark Cousins, "A História do Cinema: Uma Odisseia" (2011),há uma feita com o roteirista indiano Javed Akhtar, a respeito do maior sucesso da antiga Bollywood por ele co-escrito, o filme "Sholay" (1975). Durante a conversa, o entrevistado surpreende o entrevistador lançando-lhe uma pergunta que mais parece um desafio, uma vez que lhe pede para mencionar um único filme que possua uma quantidade maior de personagens inesquecíveis, pois, segundo ele, sua obra, neste aspecto, resta ainda hoje insuperável.

Mark Cousins não responde e o documentário segue em frente, rumo aos últimos dias da película banhada em sais de prata e ao surgimento dos filmes digitais.

Ou talvez responde, só que o faz de forma inconsciente, quando, ao tratar do Novo Cinema Independente Americano, cita um dos maiores filmes da década de 1990, isto é: "O Grande Lebowski" (1998).

De fato, a força desta obra-prima não reside na quantidade de atores célebres que prenderam parte ao elenco, mas sim nas atuações impecáveis dos mesmos, pois foram capazes de forjarem personagens históricas, totalmente fora do ordinário. Desde o trio protagonista, composto pelo hipster Jeffrey "The Dude" Lebowski, pelo veterano facilmente irritável Walter Sobchak e pelo seu amigo Donnie, até ao coadjuvante que não precisou dizer uma única palavra, o aluno de colégio obstrucionista Larry, temos um leque demasiadamente amplo de indivíduos absurdos que somente o diretor de duas cabeças do Minnesota, Joel & Ethan, poderia conceber.

Além dos já citados, há o Jeffrey "Big" Lebowski, interpretado por David Huddleston, que, devido ao caso de homonímia com o nosso anti-herói, é o que dá início a uma jornada que nada mais é do que uma deliciosa e alucinada releitura de "À Beira do Abismo" (1946), com seu enredo repleto de diálogos, mistérios e reviravoltas.

Junto a este personagem, rico e bondoso só na aparência, seguem-se seu braço direito, Brandt, e a esposa incontrolavelmente ninfomaníaca, Bunny, respectivamente vividos por Philip Seymour Hoffman e Tara Reid.

E é justamente essa tal de Bunny Lebowski, mais femme putain do que femme fatal, que será seqüestrada pelos não tão temíveis niilistas, uma ex-banda alemã de música alternativa composta pelo leader, Uli Kunkel, e por Franz e Kiefer.

Um seqüestro que talvez não é um seqüestro, assim afirma a artista avant-gard com fixação por vaginas, em particular pela própria, Maude Lebowski, filha do "Big" Lebowski, mas que aparece em socorro do "The Dude", o outro Lebowski.

E para confundir ainda mais a história, temos um inesquecível Ben Gazzara, no papel de um pornógrafo agiota, Jackie Treehorn, que manda seus dois capangas, o vândalo loiro e o Chinaman, a mijarem no tapete do Lebowski errado, do nosso The Dude.

E isso tudo só para citar os mais importantes.

O que não falta neste filme, certamente, são os personagens secundários, que não são postos de lado, sendo, pelo contrário, exaltados pelos Coen, sempre hábeis em dar cor e vida a um ator com pouquíssimo tempo a disposição: haja exemplo da seqüencia introdutória de Jesus, um John Torturro de talento inestimável sob a pele um pederasta viciado em boliche, com seu ritual pseudo-erótico para antecipar o strike.

Mas o que faz de "O Grande Lebowski" um filme tão importante?

Já falamos do amor dos Coen pelos seus heróis desajeitados, trapalhões como o Norville Barnes de Tim Robbins em "Na roda da fortuna" (1994) quando não desventurados como o Everett Ulysses McGill de George Clooney em "E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?" (2000). Porém, um amor ainda maior que este, é o que os Coen provam para com o cinema como um todo, e "O Grande Lebowski" o prova claramente não só por revisitar o noir, estilo imortal de sétima arte, mas sobretudo por ser um pastiche de inúmeros gêneros. Haja exemplo da seqüência onírica vivida por Jeffrey Lebowski na vila de Jackie Treehorn, um sonho mais cômico do que erótico, introduzido como um filme pornográfico chamado "Gutterballs", cinema dentro do cinema: temos o nosso querido Lebowski, Jeff Bridges no melhor papel de sua vida, que dança como um Fred Astaire sob efeito de ácidos, seguindo o ritmo de "Just Dropped In" do Kenny Rodgers enquanto desce as escadas em direção da sua Ginger Rogers, uma Julienne Moore vestida de Valquíria, cercada por inúmeras dançarinas coroadas por pinos de boliche, perdidas numa coreografia circular nostálgica, em pleno estilo Busby Berkeley, que é executada sobre um piso xadrez que é quase uma homenagem ao surrealismo lynchiano.

Os ecos de cerca um século de cinema em uma cena de três minutos. Fragmentação e colagem pós-moderna encaixam-se perfeitamente na cinefilia de Joel & Ethan.

Outro ponto a favor do filme é, certamente, a nova energia que este trouxe à comédia americana, em particular ao subgênero da comédia dos erros e ao tipo do humor negro. Acostumados como estamos ao riso fácil, torna-se admirável o esforço dos irmãos de conseguir um sorriso de seu público por um caminho árduo e pouco convencional.

Portanto, uma pergunta mais interessante seria a seguinte: como os Coen nos fazem rir?

Analisemos uma cena que podemos considerar clássica na filmografia dos irmãos: o interrogatório de Larry.

Brevemente: Lebowski e seus dois amigos, Walter e Donnie, chegam à casa de um garoto de colégio que acreditam ter roubado a mala cheia de dinheiro com base numa única evidência, um dever de casa assinado pela criança. Os três dão de cara com uma Corvette luxuosa e logo entendem que o Larry está torrando todo o milhão de dólares. Donnie recebe a ordem de ficar no carro enquanto os outros dois, na hora de se cumprimentarem com a empregada de casa, se passam por pessoas importantes e poderosas. Entram numa sala à la David Lynch e lá, no fundo, há algo absurdo, isto é, o pai de Larry que vive e respira rumorosamente através de um pulmão de aço. Apesar de o indivíduo estar em coma, Walter dialoga com ele como se nada fosse, pois é fã de seu trabalho, diz ele. Larry chega e se acomoda no sofá. Os dois babacas o interrogam sem conseguirem arrancar uma única resposta da criança, imperturbável e de cara feia diante dos exaltados.

Obviamente, Walter cita o Vietnam. Obviamente, Walter se irrita. Obviamente, Walter sai de casa para destruir o carrão de luxo estacionado em frente à casa de Larry. Obviamente, o carro não é de Larry, e seu verdadeiro dono, por vingança, destrói todos os vidros do carro de Lebowski que, desesperado e fora do enquadramento, grita.

Pois bem: onde está a graça nessa cena?

O segredo está nos paradoxos.

A cena, assim como o resto do filme, é moldada a partir de contrastes que são tão grotescos quanto engraçados.

Primariamente, a própria situação é paradoxal. Pondo de lado as atuações magníficas do trio de amigos, sobram inúmeros elementos que geram aquele típico constrangimento coeniano, como o senhor preso a um pulmão de aço, seu respiro medindo o tempo e cortando os silêncios, a insensatez de vermos dois adultos que utilizam de uma violência verborrágica para detonar uma criança, e, então, o inesperado, ou seja, Larry e seu rosto comicamente sombrio, um reflexo do coma paterno, que nada precisa fazer para que os dois acabem numa encrenca.

Como se não fosse suficientemente ilógico ver Walter e Jeffrey sendo esmagados pelo estúpido estoicismo de um pirralho, vem em favor do diretor de duas cabeças seu incrível talento na edição. Os Coen sabem ser engraçados porque sabem editar.

Temos cinco campos e cinco contra-campos. Por cinco vezes aparecerão, num primeiro plano duplo, as figuras cômicas de Walter e Jeffrey, os dois se irritando, se mexendo, vomitando palavras, uma fala atropelando a outra. E lá onde os cinco campos são longos e agitados, extremamente falados, os contra-campos são extremamente curtos: o rosto monolítico do garoto permanece na tela por um terço do tempo se comparado aos dos adultos, sendo seu silêncio invadido pela tagarelice alheia.

O corte dos Coen exalta o contraste, nos faz perceber o paradoxo, nos dá tempo de saborear o constrangimento, e é nisso que achamos graça. Talvez seja por isso que, ainda hoje, Joel & Ethan utilizam-se do pseudônimo Roderick Jaynes para assinarem a edição de suas obras.

Mas o talento dos dois manifesta-se também na direção.

Agora os três amigos estão voltando pra casa, os rostos abatidos, o carro mais abatido ainda, sem para-brisas e manchado de ferrugem aqui e ali. Os três estão sendo filmados em primeiro plano, mas a objetiva é grande-angular, o que permite à dupla do Minnesota de capturar tanto a expressão cômica dos interpretes, quanto os detalhes ao redor destes.

Mas que detalhe?

Jeffrey continua dirigindo, placidamente triste, enquanto Walter e Donnie levantam rapidamente as mãos para darem uma mordida aos sanduíches que tanto desejavam, antes mesmo do interrogatório de Larry.

Eis o detalhe.

Os Coen não se limitam a brincar entre um plano e outro, chegando a inserir a comicidade dentro de um único enquadramento.

E por último, mas não menos importante, está o próprio protagonista, Jeffrey Lebowski.

O que fez, e ainda faz, desse detetive desleixado, slacker da maldita geração X com a paixão pelos Creedence e pela bebida White Russian, um verdadeiro fenômeno de culto?

De fato, existe uma religião ao redor dele, o dudeismo.

Enquanto os Estados Unidos decretavam guerra ao Iraque, a crítica cinematográfica exigia um cinema engajado, reclamando pela falta de posicionamento político de certos autores, dentre os quais se destacavam, justamente, os irmãos Coen. Mais interessados em retratar, com um humor desencantado, cinismo e maldade dos subúrbios americanos, Joel e Ethan nunca sentiram necessidade de criarem roteiros partidários. Não é aleatória a decisão de pôr Saddam Hussein no meio de um delírio onírico, ocupado em entregar sapatos de boliche. E, justamente, aquela peça rara do Lebowski responde aos anseios de seus coetâneos, filhos pós-Vietnam que não queriam saber de outra guerra, ansiando pelos ideais fracassados do movimento hippie. Porque, de fato, é nisso que reside o grande charme do personagem imortal de Jeff Bridges: ele sabe de ser um derrotado, e seu talento está na aceitação de sua derrota.

                                                                                                       Dino Lucas Galeazzi

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