Laranja Mecânica (1971)

07/02/2017

A Clockwork Orange

Crime ‧ Drama ‧ Sci-fi ‧ 2h 16m ‧ 1971 ‧ Stanley Kubrick


ESSÊNCIA NIILISTA


Levando em consideração a enorme quantidade de pesquisas e análises a respeito da filmografia de Stanley Kubrick, tratar de "Laranja Mecânica" pode parecer redundante, se não até supérfluo.

Todavia, diante de um falso moralismo imperante nos dias atuais, mais do que nunca se faz necessária uma reflexão a respeito do legado do mestre nova-iorquino, em particular de sua obra mais controversa: afinal, "Laranja Mecânica" instiga ou não a violência?

Todo mundo conhece a história.

Alexander DeLarge e seus três capangas, Pete e Dim e Georgie, estão curtindo uma noite a base de "leite-com" (leite com anfetaminas), num bar à la mode de uma Londres distópica, quando, como de rotina, decidem se entregar aos prazeres da "ultra violência". Em seqüência, os "drugues", como gostam de serem chamados, cometerão uma série de crimes hediondos: espancamento de um sem-teto; luta sangrenta contra uma gangue rival; roubo de um carro; e, por último, o rotineiro "entra-e-sai", isto é, invasão de uma habitação com conseqüente estupro da dona de casa, ao som de "Singin' in the Rain".

No dia seguinte, após um satírico encontro carregado de advertências e de tensão homossexual com seu conselheiro pós-correcional, Alex concede-se uma tarde de sexo e Beethoven, suas maiores paixões, antes de reencontrar-se com os "drugues" para mais um dia de crueldades. Há um momento em que a autoridade de Alex é posta à prova pelos próprios subalternos, mas trata-se de um motim que nada pode diante de violência explosiva e cruel do líder.

Tudo segue segundo os planos do grupo, até que o estupro precipita no homicídio, e Alex cai vítima de uma armadilha improvisada pelos seus amigos, sendo então preso pela polícia.

Passam-se dois dos quinze anos previstos pela sentença e Alex, desesperado para saborear novamente a liberdade, oferece-se como voluntário para uma cura inovadora, o tratamento Ludovico, ostentado pelo novo partido no poder como solução ao problema da superabundância dos presos nos cárceres britânicos: os cientistas garantem aniquilar todo e qualquer instinto negativo do criminal que for submetido à experiência.

Eco de uma doutrina pavloviana, o método demonstra-se extremamente eficaz, uma vez que ao ingênuo Alex são mostradas imagens de violência, que lhe despertam um prazer quase sexual, acompanhadas do efeito de um soro químico, que lhe provoca dor e náusea.

Durante as projeções, põe-se para tocar a Nona Sinfonia de Beethoven, deleite do protagonista que vira parte da tortura.

Logo, Alex associa a violência ao vômito, tornando-se incapaz não somente de se defender, como também de fazer qualquer escolha.

Finalmente reabilitado, o nosso herói é posto para fora do cárcere. De cena em cena, dá de cara com as pessoas às quais provocou sofrimento: os pais alugaram seu quarto a um inquilino exemplar, que viciam como fosse um filho; o sem-teto vinga-se ao privá-lo de seus poucos pertences; Dim e Georgie, agora policiais, abusam do poder, levando-o num terreno baldio e espancando-o brutalmente; e, dulcis in fundo, o escritor que teve a esposa estuprada pelos "drugues", reconhecendo seu torturador em Alex ao ouvi-lo cantarolar "Singin' in the Rain", o obriga a se atirar pela janela do segundo andar pondo para tocar o clássico de Beethoven a todo volume.

Como para "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968), também a narrativa de "Laranja Mecânica" conclui-se de forma circular: após a tentativa de suicídio, a mídia da oposição põe Alex como vítima dos métodos fascistas do novo governo, obrigando o Ministro da Justiça em pessoa a tratar com Alex, dando-lhe novamente a liberdade de cometer suas barbáries, só que, dessa vez, sob a proteção do Estado.

Ou seja, retorna-se ao ponto de partida, e a moral da história é que não há moral alguma: a vida em sua essência niilista; ou melhor, a existência e seu eterno retorno.

Fala-se em niilismo, pensa-se em Nietzsche.

E talvez, uma visão nietzschiana da jornada de Alex possa ser útil para uma leitura aprofundada de "Laranja Mecânica".

Tanto o filósofo alemão quanto o mestre nova-iorquino, retratam a sociedade, em suas respectivas obras, como uma vilã invisível, um Grande Outro lacaniano que tudo tende a modelar, a aniquilar.

Família, prisão, instituições políticas, etc. Independente de qual forma assumam para se manifestarem, as malhas do tecido social têm por objetivo a repressão dos instintos do ser humano, considerados nocivos para a vida em comunidade.

A este ponto, vale ressaltar que a primeira coisa à qual Alex deve renunciar não é sua agressividade, o prazer que sente em provocar dor no próximo, mas sim sua paixão pela música, manifestação artística que, para Nietzsche, está diretamente associada ao irracional. Portanto, entendida a figura de Alex enquanto alegoria do homem livre (no caso, livre de cometer o mal), o método Ludovico, mais que transformar selvagens em cidadãos exemplares, nos aparece enquanto engrenagem da máquina social, destruidora da raison d'être dos indivíduos.

Não é um acaso que a cena dos detentos no pátio, obrigados a girarem em círculos, seja uma clara homenagem ao quadro "A ronda dos presos" (1890) de Vincent Van Gogh, um exemplo verídico de um artista, isto é, um espírito livre, que, por ser julgado louco, fora afastado da natureza e, então, recluso num hospício.

Nessa perspectiva, injetar o soro nauseante coincide com a inserção de um sentimento de culpa no ânimo do protagonista. A esse soro, geralmente, costumamos dar o nome de dogmas religiosos, leis civis ou hipocrisias morais.

Seguindo a mesma lógica, o tratamento Ludovico nada mais é que a suma da moral cristã ocidental, utilizada pelos fracos para cortar as asas de um potencial super homem.

Alex é dionisíaco. A sociedade é apolínea.

Todavia, assim como Anthony Burgess, autor da obra literária que o inspirou, Stanley Kubrick não visa criticar exclusivamente a barbaridade do sistema coercitivo ao qual nos entregamos. O objetivo é mais alto e o caminho que leva até ele é mais tortuoso: retratar o paradoxo da psique humana.

"Laranja Mecânica" não doura a pílula.

"Laranja Mecânica" não põe em cena um discurso vitimista, rotulando a sociedade como malvada e o homem como bondoso: mais que qualquer outro cineasta, Kubrick está ciente da violência que reside no ser humano, e a mostra com um olhar clinico e destacado.

Outra interpretação plausível ampara-se na tripartição freudiana.

Basicamente, o filme é dividido em três partes, uma para cada fase da vida: infância, adolescência e maturidade.

Durante a infância, Alex é livre de fazer o que quer. Ele é puro por ser pura maldade. Sua violência não tem finalidade alguma a não ser si mesma. Quando seus capangas lhe sugerem praticar uma "ultra violência" menos arriscada, que visa ao lucro, Alex, feito uma criança desapontada, reage de forma brutal, restabelecendo a velha ordem.

O "leite-com" jorra de um mamilo de uma estátua branca, branca como as vestimentas dos "drugues", branca como a pureza.

Uma garrafa de leite é utilizada para cegar o pobre Alex. Pete e Dim e Georgie tiram sarro do líder como de um menino pequeno.

Eis então que chega a adolescência. O vácuo criado pela falta de uma figura paternal severa é preenchido pela sociedade através de suas instituições fundamentais: a igreja e a prisão.

É interessante notar como Kubrick não poupa críticas amargas à mídia, nem mesmo à arte cinematográfica, uma vez que o método Ludovico se dá através de uma tela de cinema.

A passagem para a fase adulta é curiosamente marcada por uma tentativa de suicídio, quase que um salto da fé kierkegaardiano: Alex desespera-se perante o absurdo de uma vida social e entrega-se a uma entidade superior, que aqui coincide com o próprio Estado.

A maturidade é alcançada num leito de hospital. O sono do protagonista é interrompido pelos gemidos de prazer de uma enfermeira e de um médico, o ato sexual ocorrendo por trás de um espaço fechado: e não é isso que marca a diferença entre o cidadão e o selvagem, estar ciente do lugar privado onde poder satisfazer suas necessidades?

O filme conclui-se logo depois de um acordo mesquinho estipulado entre o Ministro da Justiça e um Alex mais paparicado que no começo da película: retorna o contrato social teorizado por Rousseau, trazendo consigo as hipocrisias moralistas condenadas por Nietzsche.

A última seqüência é uma fantasia erótica do nosso herói, que se vê no meio da neve (novamente, o branco), aplaudido por um público que o observa feliz enquanto estupra uma mulher.

Toca a Nona Sinfonia de Beethoven.

Importante perceber como a claustrofobia, seja esta sistemática ou psicológica, reflete-se também na fotografia da obra: por toda a duração da película, o diretor teve o cuidado minucioso de nos mostrar o céu sempre circunscrito por alguma geometria arquitetônica: janelas, paredes, tetos, skyline londrina, etc. Há um único momento em que respiramos o azul do céu, e é quando Alex se joga da janela. Outro paradoxo kubrickiano.

"Laranja Mecânica" não instiga a violência. Mas também não a condena.

"Laranja Mecânica" é um retrato cruel e sincero da natureza humana.

É lícito não gostar do filme, já que não gostamos de nós mesmos.

                

                                                                                                          Dino Lucas Galeazzi

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