CRÔNICA SOBRE POBRE

17/11/2016

Deixei tudo para o último segundo, como sempre.

É noite.

Amanhã tenho que entregar uma crônica baseada num artigo de jornal e ainda não escrevi nada.

Porém, não me parece ser uma tarefa difícil. Matanças, guerras, fome e miséria não são o que falta nesse mundo, e é esse o tipo de assunto que pode gerar uma boa crônica, pois todo mundo gosta de ler a desgraça alheia.

- Vamos ver quem morreu!

A foto em primeira pagina do jornal A Tarde é exatamente o que eu queria: uma pessoa em estado de choque é arrastada para fora de um local destruído, vestindo só uma cueca.

Diante da cena, imagino o que escrever. Começo pela perspectiva de um pai desesperado que chora pela morte do filho. O nome do menino era João dos Santos. João era pobre, porém cheio de esperanças para o futuro, esperanças que acabaram se perdendo entre as chamas de uma explosão. Poderia concluir com uma citação de Eliane Brum, pois, como ressalta o pai de João, "não há nada mais triste do que enterro de pobre", o que é verdade: além da dor pela perda, há o custo do caixão, que deve ser um absurdo para quem vive de salário mínimo.

Ao ler que a explosão só destruiu um quarteirão, ferindo apenas oito pessoas, sem matar ninguém, sou obrigado a interromper o fluxo dos meus pensamentos.

- Uma morte seria o ideal para uma crônica triste.

Movo-me entre as paginas, corro entre as linhas, em busca da bala perdida, do tiroteio sangrento, da chacina dos traficantes, mas parece que não houve mortes violentas de ontem para hoje, como se a senhora Violência tivesse tirado um dia de folga.

Esbarro-me num outro tipo de tragédia brasileira: a educação. Há uma matéria sobre a UFBA, com uma foto de um estudante que força um sorriso. A escrita ao lado me revela o que ele pensa: "Essa é a segunda greve que enfrento. Já era para ter me formado". Elaboro uma história. Enquanto teço um enredo critico, forjo personagens marginais do temperamento forte. Tinha essa tal de Maria de Jesus que voltou feliz às aulas, podendo finalmente terminar o curso de serviço social. Maria era pobre, porém cheia de esperanças para o futuro, esperanças que foram roubadas por uma dupla de assaltantes. Devido a falta de vigilância, as faculdades públicas costumam ser teatro de arrastões, e as vítimas geralmente são mulheres. Talvez, Maria resistiu ao assalto e acabou levando um tiro, morrendo. Talvez, a mãe de Maria, Dona Carlota, está desesperada porque, como diz Eliane Brum, "A tragédia suprema do pobre é que nem com a morte escapa da vida".

- Isso vai me dar muito trabalho, preciso de uma historia mais breve.

Não tinha passado por um artigo sobre hospitais? Volto atrás de algumas paginas, e lá está ela, o petit gateau das tragédias brasileiras: a saúde. A reportagem é longa e confusa, mas dá para entender que fala sobre a carência de doadores de órgãos na Bahia. Outro pano de fundo perfeito para uma crônica dissertativa à moda de Eliane Brum.

Pensem em Sirleide dos Anjos, que trabalhou na mesma padaria há zilhões de anos. Sirleide era pobre, porém cheia de esperanças para o futuro, esperanças que diminuíram junto ao número de doadores de sua cidade. Não houve o transplante do qual ela precisava.

É uma historia excelente.

Começo a escrever o que se passa pela minha cabeça. Porém, outra vez, tenho que parar o trabalho. Levanto de má vontade, saio de casa e desço até a rua, onde um grupo de crianças pobres está jogando futebol. Interrompo a diversão e tomo conta da bola, desbotada e murcha. São cinco meninos, todos idênticos, sem nome e sem uma roupa decente para vestir.

Digo: - Estou escrevendo uma crônica. Quero silêncio. Chega de gritos por hoje, okay?

Eles acenam que sim com a cabeça. Devolvo a bola. Então eles voltam a fazer o mesmo barulho infernal de antes. Não há como mudar essa situação, digo.

Volto para casa e penso que aquelas crianças não sabem quanto é difícil escrever uma crônica sobre pobre. Coitados.

DINO LUCAS CASTRO GALEAZZI

20/10/2015

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