Ao Cair da Noite (2017)

11/07/2017

It Comes at Night 

Mistério ‧ Terror  ‧ 1h 31m ‧ 2017 ‧  Trey Edward Shults


A PORTA VERMELHA


Enquanto uma misteriosa doença assola o planeta, Paul, sua esposa Sarah, e o filho adolescente dos dois, Travis, vivem reclusos numa casa de campo.

O filme começa com a morte de Bud, pai de Sarah, que manifesta os sintomas do morbo. Paul e Travis, usando máscaras de gás e luvas de borracha, levam o velho na floresta, o executam e, após jogar o corpo numa cova rasa, o queimam, levantando uma coluna de fumaça.

O ritual está concluído. Traumatizado, Travis ingressa na vida adulta.

Segundo longa do diretor norte-americano Trey Edward Shults, "Ao Cair da Noite" (2017) é um thriller psicológico extremamente tenso e claustrofóbico, cuja força reside na capacidade do diretor de utilizar a seu favor os mecanismos que regem a suspense.

Afastando-se das explicações verborrágicas que tomaram conta do final de "Krisha" (2015), seu primeiro trabalho, Shults opta para deixar muitas perguntas sem resposta, fazendo dos fios soltos o ponto de força da trama.

A própria pandemia, pano de fundo da história, resta um grande enigma para o público: do que se trata, afinal? Como se propagou pelo mundo?

Os sonhos de Travis, uma constante ao longo da obra, parecem nos sugerir que se trate de uma praga parecida com a peste negra que dizimou a população mundial na Idade Média, e o faz através das pinturas sombrias de Pieter Brugel, o Velho, haja exemplo do famoso quadro "Triunfo da Morte", que aparece em dissolvência durante o primeiro pesadelo.

Logo após uma breve seqüência onírica, um estrangeiro invade a habitação de Paul. Uma vez capturado, descobrimos que se trata de Will: assustado e amarrado a uma árvore, ele fala de como sobreviveu, de como sua esposa e seu filho necessitam de ajuda, assegurando que está sozinho, pois perdeu seu irmão logo após o surto da doença.

De novo, nos questionamos: será que ele está dizendo a verdade? Deveríamos ajudá-lo?

Este tipo de artifício narrativo nos coloca na mesma posição do protagonista: assim como Paul, sabemos pouco do que está acontecendo, sentimos suas dúvidas como se fossem nossas.

Shults deixa isso claro na cena sucessiva, quando vemos os três personagens sentados à mesa, discutindo sobre o que há de ser feito para com Will: é um plano múltiplo, aberto, e a câmera está no lado da cadeira desocupada, como se fosse o olhar de um quarto membro da família. É uma decisão simples, mas eficaz, que envolve o espectador por levá-lo para dentro da ação.

Uma vez que a segunda família, composta por Will, sua esposa Kim, e o filho de 5 anos do casaç, Andrew, se junta à primeira, tensão e incerteza voltam a crescer.

Num momento de fraternidade entre os dois patres familias, Will conta um pouco de sua vida, esquecendo de mencionar seu irmão ao se declarar filho único.

Dá-se espaço a outras perguntas: a história do irmão era uma mentira? Se sim, sobre o que mais ele fora capaz de mentir?

O diretor insinua insegurança no espectador em inúmeras cenas. Mas, certamente, uma das mais eficazes ocorre no momento em que o cachorro de Travis, Stanley, sinala uma presença na floresta, latindo. Os personagens olham para a direção à qual o cachorro aponta. E lá não há nada. Lentos zooms in nos rostos dos personagens definem o ritmo. De repente, o cachorro foge. Logo, o dono corre atrás dele, até perdê-lo de vista. Escuta-se um ganido e, em seguida, o silêncio.

Stanley reaparecerá mais uma vez, em fim de vida, atrás da porta vermelha: não se sabe o que aconteceu, o que o feriu.

Ter medo de alguma coisa específica é menos assustador do que ter medo de algo que não sabemos definir.

"Ao Cair da Noite" assusta por nunca concretizar o elemento que gera terror. Podemos afirmar que o filme trata exatamente disso, do medo do desconhecido.

Também, não é aleatória a escolha de fazer com que o precário equilíbrio instaurado entre os dois núcleos familiares se desfaça a partir, justamente, de um dilema: alguém abriu a porta vermelha que deveria sempre ter ficado trancada. Quem é o culpado?

Mais contagioso que a doença misteriosa é o sentimento de incerteza que corrói os laços humanos, dando vazão a uma xenofobia extrema, à qual basta pouco para transformar-se em violência.

Mas o talento de Shults não se limita ao roteiro, chegando a traduzir em imagem a já citada sensação de dubiedade que assombra a família protagonista. Durante as cenas diurnas, a fotografia dessaturada de Drew Daniels acinzenta as cores dominantes, como os verdes da vegetação e os azuis do figurino, tornando desconfortáveis momentos, em aparência, amenos. À noite, seja em casa, seja nas excursões noturnas, jogos de luzes e sombras tornam o cenário instável, uma vez que os movimentos das tochas elétricas fazem com que a escuridão deslize pelo sentido oposto.

Detalhes do cenário reforçam o clima de claustrofobia que permeia a película: se em uma seqüência percebemos que vãos de janelas e outras pequenas aberturas emolduram tanto os personagens quanto os feixes de luz, tornando o ambiente mais obscuro, em outra, as raízes de duas árvores derrubadas traçam desenhos geométricos que cercam a figura de Travis, diminuindo-o, sugerindo uma sensação negativa, de reclusão.

A própria montagem contribui para tornar o filme mais obscuro, incerto, uma vez que é dada ênfase ao cross dissolve, ao invés do mais corriqueiro jump cut.

Ao decorrer do filme, os pesadelos de Travis tornam-se mais freqüentes, chegando a um ponto em que comecemos a duvidar do que estamos assistindo, nos perguntando se a cena é real ou o enésimo delírio do rapaz. O diretor não doura a pílula, traindo a expectativa do público para transmitir a paranóia vivida pelos demais personagens. Pensemos na cena em que Travis acorda de um sonho terrível para então perceber que, de fato, está doente: os braços estão encobertos por pústulas purulentas e ele, desesperado, começa a se coçar. Desesperamos-nos com ele, por breve momento, até percebemos que se trata de um segundo pesadelo, que se sucedeu ao primeiro. É um truque simples, mas, pelo fato de não ter acontecido até aquele momento, nos pega de surpresa.

Todavia, em termos estritamente cinematográficos, mais assustador do que a dúvida, ou o desconhecido, é medo do que é inevitável. Isso já fora comprovado por Hitchcock, e reforçado ao longo da carreira de artistas que trilharam pelo caminho desbravado pelo mestre do suspense.

Diretores talentosos costumam eliminar um susto fácil, inesperado, em prol de uma tensão contínua, dando ao público uma informação imagética a mais, que foge ao olhar do protagonista, mas não à lente da câmera.

Haja exemplo de uma cena tanto irônica quanto sombria presente no final de "O Bebê de Rosemary" (1968), quando o complô contra a protagonista já se fez mais que evidente: em primeiro plano temos Rosemary, grudada no telefone, ligando desesperadamente para amigos e parentes; em segundo plano, os temíveis vizinhos entram furtivamente no apartamento da protagonista, caminhando na ponta dos pés. Saber antecipadamente do fracasso da tentativa de fuga de Rosemary torna a cena não só assustadora, mas frustrante.

Algo parecido ocorre em "Blade Runner" (1982), quando Rick Deckard está caçando a andróide Pris no apartamento de J. F. Sebastian, repleto de bugigangas cyber punk e de robôs humanóides. Nós, ao contrário de Deckard, conhecemos as feições da inimiga e, através de um único long shot (plano aberto) a localizamos. O que torna a cena insuportavelmente tensa é ver o detetive aproximar-se dela sem poder avisá-lo do perigo que está correndo.

Um caso mais recente é a já histórica cena do encontro entre o coronel Hans Landa e o senhor LaPeditte no filme "Bastardos Inglórios" (2009). Desde que os dois sentam à mesa, até o momento em que o fazendeiro confessa a presença de uma família judia escondida debaixo do assoalho da sala, passam-se pouco mais de 12 minutos. Daquele momento até a hora do massacre dos parentes de Shosanna Dreyfus por parte dos nazistas, devemos esperar mais 2 minutos de clímax. A tensão teria sido inexistente se o diretor Quentin Tarantino não tivesse nos revelado o segredo antecipadamente, exatamente no meio do diálogo entre Landa e LaPaditte. Vale ressaltar que em uma seqüência de quase 15 minutos, somente 8 segundos são de ação, sendo o restante do tempo empregado para o crescendo da tensão.

Nos três casos analisados temos algo em comum: nós, público, sabemos de algo que o protagonista ignora. Isso é a base do suspense.

Trey Edward Shults utiliza-se do mesmo artifício tensivo em duas seqüências.

Na primeira, Paul, superada a hesitação inicial, decide ajudar Will. Os dois montam no carro e partem em direção ao esconderijo onde, supostamente, se encontra a família do segundo. No começo da viagem, a dupla sofre uma emboscada por parte de dois homens armados. Paul consegue matá-los, mas, indiretamente, acusa Will de ser um traidor. Por sua parte, Will responde que também lutou contra um dos dois agressores.

Neste caso, o diretor teve duas sacadas. A primeira, e a mais óbvia, é a de nos fazer duvidar constantemente de Will. A segunda, e a mais importante, é um detalhe sutil, mas fundamental: enquanto Paul, em primeiro plano, está prestando atenção à rua e ao seu passageiro, nós, espectadores, percebemos o vulto de um indivíduo armado, em segundo plano, no meio da floresta. É uma imagem rápida, que dura menos de um segundo, mas é tempo suficiente para ficarmos em estado de alerta.

Também na seqüência final temos um crescendo de tensão.

O choro de Andrew atravessa as paredes da casa, chegando ao ouvido de Travis, que, assustado, acorda seus pais, atualizando-os da situação: Andrew está doente. Paul e Sarah decidem afastar a segunda família de forma decisiva e violenta: armados, vestindo máscaras de gás e luvas de borracha, vão até o quarto dos hospedes.

Quando Paul pede para ver a criança, Will abre a porta, saca uma arma e o obriga a entrar no quarto junto com ele. De novo, Shults teve a genialidade de nos deixar a par de uma informação fundamental que Will ignora: Sarah também está acordada e fará algo para proteger Paul.

Não é a violência que gera tensão, mas, sim, o tempo que devemos esperar para que ela se manifeste.

***

Assim como para "Krisha", "Ao Cair da Noite" tem suas raízes fincadas no solo fértil do trauma familiar: em várias entrevistas, Trey Edward Shults fala deste filme como parte de uma terapia, pois o jovem diretor escreveu o roteiro dois meses após a morte de seu pai.

Isso se torna evidente desde o princípio: as palavras que Sarah diz para Bud são as mesmas que o diretor pronunciou ao se despedir do pai.

Podemos afirmar que o filme desenvolve-se a partir dessa imagem, desse sentimento: a arte torna-se, então, catarse. Talvez seja por isso que, enquanto obra pós-apocalíptica, "Ao Cair da Noite" afasta-se dos cenários mais comuns, descritos por filmes como "Filhos da Esperança" (2006) ou "Mad Max: Estrada da Fúria" (2015), aproximando-se do mood de "Melancholia" (2011) e de "O Abrigo" (2011).

Portanto, por mais que o filme pareça mover uma crítica à xenofobia, coincidindo com a crise imigratória dos dias atuais, devemos levar em consideração os elementos narrativos que giram em torno do patriarcalismo, ou melhor, da ruptura familiar que se cria em conseqüência deste último.

Reunidas as duas famílias, Paul estabelece as regras que deveriam propiciar um convívio duradouro. Dentre estas, destaca-se a que será quebrada: "A porta vermelha é a única via para entrar e sair da casa, ela permanece fechada e trancada o tempo todo".

A primeira vez que a porta vermelha aparece na tela, o faz por meio de uma cena onírica, prestando-se, assim, a uma leitura psicanalítica. Como sabemos, Travis vivenciou há pouco tempo a morte de Bud, que supomos ter sido o patriarca (líder do grupo) até o momento em que manifestou os sintomas da doença. Matá-lo e queimá-lo daquela forma, com toda uma sucessão de gestos e cuidados, se traduz na coroação de Paul (que, casualmente, é professor de história especializado em Império Romano), bem como num ritual de passagem para Travis, agora o próximo candidato ao trono.

Antes mesmo de o público ser informado sobre a existência de uma única porta de acesso e saída, Travis sente-se perseguido por esta em seus sonhos. O inimigo, o estrangeiro, isto é, o perigo tenta atravessar o limiar da porta. A maçaneta treme e tudo que é diverso, alheio, faz pressão para entrar.

A dubiedade que rege a gramática do filme nasce da insegurança de Travis. O terror informe, sem nome, que está além da porta vermelha, traduz algo que ele não consegue articular em palavras: o medo de ter que se tornar um adulto.

O surgir da porta vermelha nos pesadelos de Travis, associada a algo negativo, não é recordação, e, sim, repetição.

Na psicanálise, a recordação é a lembrança de algo que o paciente pode, e consegue, lembrar, porque não fora reprimido pelo seu inconsciente, lá onde a repetição, esteja esta contida num gesto mecânico ou num sonho recorrente, está associada à atuação do paciente. O que se repete é o impossível de se dizer, o impossível de ser recordado: a repetição é a atuação movida por componentes psíquicos recalcados, a manifestação concreta do trauma que define o paciente enquanto sujeito.

Sempre nesta perspectiva, podemos considerar a segunda família como sendo um reflexo da primeira. Indo além das óbvias semelhanças, o que nos interessa são as dinâmicas em torno dos filhos: levando em consideração a diferença etária entre os dois, Travis encontra-se numa posição incômoda e degradante, a mesma de Andrew, pois ambos estão submissos à vontade dos pais, ambos estão tragicamente fadados a reprimirem quaisquer pulsões sexuais.

Não é aleatória a escolha por parte do roteirista de fazer com que a situação degenere a partir da manifestação de uma tensão sexual entre Travis e Kim, a mulher da segunda família: numa noite insone, os dois encontram-se na cozinha, sentam-se à mesa e relembram de detalhes da vida antes da pandemia. Um movimento por parte dela o distrai, os seios premem contra o tecido, por debaixo da blusa, e ele inventa uma desculpa para se afastar dela.

Por mais que queira relacionar-se com Kim, Travis há de lidar com algo mais assustador das prescrições paternas, isto é, um desejo sexual adulto.

Travis sonha com Kim, a vê no seu quarto, as cores quentes, as luzes alaranjadas, o corpo dela parcialmente despido que se posiciona acima do dele. Os dois se beijam. Ela se afasta e de sua boca derrama-se um líquido preto e viscoso.

Travis acorda.

Do que ele tem medo, afinal?

Outra repetição consiste, justamente, nos pesadelos que envolvem o avô de Travis: Bud, num estado de deformação necrotizante avançada, aparece várias vezes nos sonhos do protagonista para assustá-lo.

Mais que um mero auxílio narrativo para jump scares, a figura de Bud, em parte tenebrosa, em parte mítica, nos remete a uma componente sexual reprimida, prestes a explodir: ele é violento, se agita, treme, grita, vomita, despeja fluídos pelo quarto de Travis.

Em suma, Bud é o que o jovem guarda por debaixo de sua educada e silenciosa superfície, o que fora enterrado, mas que agora preme constantemente para emergir.

No final, as coisas fogem do controle: os impulsos devem ser sufocados.

A própria direção de Shults, sempre sóbria e firme, agora reflete o absurdo da situação, testemunhando o massacre derradeiro por meio de uma câmera na mão, instável e sensível.

Descobrimos que Travis fora infectado. Num último delírio onírico, o vemos correndo em direção à porta vermelha, não mais temida, mas, sim, ansiada.

Retornemos à mesa da sala, os corpos de Paul e Sarah iluminados por débil luz branca, o assento de Travis vazio.

Não há espaço para um filho adulto nesta casa.

Nunca houve. 


                                                                                                          Dino Lucas Galeazzi

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