40 Anos de Eraserhead

12/06/2017

O Último Filme da Meia Noite

INCÔMODO

"Um filme sobre coisas sóbrias e inquietantes". É com essas palavras que o diretor norte-americano David Lynch define seu primeiro longa-metragem, "Eraserhead". Não uma palavra a mais, nem a menos, pois, ainda hoje, ele se recusa a falar sobre o filme em entrevistas e debates, mantendo intacta aquela aura de mistério que o envolve.

Não há respostas, somente perguntas. Por este motivo, e por vários outros, "Eraserhead" continua sendo, a distância de 40 anos de sua estréia, uma obra incômoda, que resultou na lista dos 25 filmes mais perigosos da história pela prestigiada revista Premiere.

Mas afinal, qual a importância de "Eraserhead" para a sétima arte?

RETORNO AO SURREALISMO

No curta-metragem "Um cão andaluz", de 1929, uma pessoa observa a lua sendo atravessada por uma nuvem filiforme. Na cena seguinte, a mesma pessoa se aproxima de uma jovem mulher, segura sua cabeça entre as mãos e, em seguida, corta seu olho com a lamina de um barbeador.

Esta emblemática seqüência fora um choque para público e crítica de seu tempo. Um então jovem Luís Buñuel, graças à parceria de Salvador Dalí, lançou as bases para o movimento surrealista: a intenção era de revolucionar as artes, "cortar" o olho do espectador, ainda preso à linearidade e à lógica narrativa, propondo uma estética onírica.

Projetado nos cinemas pela primeira vez em 1977, a obra-prima e obra-primeira de Lynch propõe um desafio parecido ao de Buñuel, pondo em cena um pesadelo.

"Uma das melhores definições que eu já li sobre o filme, uma vez, foi a de ser um desfile linear do cérebro de Lynch", diz Fábio Rockenbach, crítico cinematográfico. Ao tratar da dificuldade em se destrinchar a obra de Lynch, confessa que nunca conseguiu escrever a respeito, pois, para ele, é difícil "explicar essa linha tênue entre ser um filme ou uma experiência".

Se na década de 1930, o desafio era entender o significado por trás das imagens desconectadas propostas por cineastas como Man Ray e Jean Cocteau, em 1970 e 1980 temos as provocações de David Lynch: desde seus primeiros curtas, como "The Grandmother" (1970), até suas obras mais maduras, como "Veludo Azul" (1986), o diretor de Missoula soube atualizar as experimentações dos mestres surrealistas, renovando a linguagem cinematográfica.

FILMES DA MEIA-NOITE

"Eraserhead" conta a história de Henry, pobre empregado numa cidade industrial, que descobre ser pai de uma estranha criatura, concebida com sua namorada, Mary. Esta, não suportando a situação, foge, obrigando o marido a lidar sozinho com os prantos do filho. A isso tudo, mescla-se a figura angelical e deforme que vive dentro da calefação, o ser tenebroso que move as alavancas num planeta distante e a presença de uma vizinha sensual.

Para Marcos Brolia, editor do site 101 Horror Movies, o filme "é um pesadelo surrealista sombrio, pessimista, que abusa de um visual tétrico para contar uma história macabra e perturbadora", o que não se afasta da interpretação mais comum, segundo a qual o filme trata do trauma da paternidade. Todavia, para Lynch, ninguém nunca chegou perto do real significado da obra.

Portanto, a sinopse não-linear, as metáforas íntimas e inacessíveis, bem como a sexualidade perversa, as deformidades, as maquiagens protéticas hiper-realistas e, sobretudo, os mistérios em torno da produção da criatura mutante (que ainda hoje não se sabe como foi feita), tudo isso afastou o filme do circuito comercial, mas serviu para inseri-lo no movimento dos Midnight Movies, os Filmes da Meia-Noite.

Cineastas como George A. Romero e John Waters surgiram nesse cenário transgressivo e politicamente incorreto, desafiando tanto o dito bom-gosto do público comum quanto os cânones e as regras cinematográficas.

Marcelo Carrard, jornalista e editor do canal do YouTube Cinema Ferox, lembra do surgimento deste fenômeno artístico e social, estabelecido com a projeção do filme "El Topo" (1970) no Elgin Theatre: segundo ele, então "tudo era uma espécie de transe coletivo localizado naquele local, naquele momento".

Como mostrado no documentário "Os Filmes Proibidos da Meia-Noite" (2005), películas como "Pink Flamingos" (1972) e, mais ainda, musicais revolucionários como "The Rocky Horror Picture Show" (1975) representavam a contracultura não somente pelos temas tratados, mas, sobretudo, por trazerem multidões de fãs às salas, tornando o filme uma experiência coletiva.

A obra de Lynch era o outro lado da moeda, não apresentando elementos lúdicos. "Eraserhead" era (e ainda é) um terror introspectivo, visceral, que servia para a reflexão.

Carrard explica que "com a chegada dos anos '80, o foco mudou: surgiu o VHS, ao mesmo tempo que a MTV, e as platéias de cinema mudaram". Filmes desse tipo podiam ser vistos na intimidade de um quarto. Segundo Rockenbach, devido ao advento de novas tecnologias, "Ir ao cinema durante a madrugada passou a ser um gesto de resistência, mais do que de necessidade", algo muito parecido ao problema vivenciado atualmente pela sétima arte: serviço de streaming e torrent estão tirando dos cinemas uma ampla fatia de espectadores, trazendo prejuízo econômico às casas de produção.

LEGADO

Para Brolia, o legado dos Filmes da Meia-Noite "foi exatamente colocar David Lynch no mapa, um dos maiores cineastas da história, e, principalmente, colocar o cinema de gênero em uma espécie de patamar entre o cult, o tal "cinema de arte", e o esquisito, o grotesco", em sintonia com a opinião de Rockenbach. Para ele, esse movimento, além de permitir a criação de um publico específico que desafiava o sistema de estúdios e o status quo vigente, serviu para que o gênero terror perdesse sua inocência, "escancarando um discurso de crítica social que repassava ao ser humano a culpabilidade que antes era jogada em cima do sobrenatural, do religioso ou do que vinha de fora".

Todavia, o que se perdeu para sempre, diante do monopólio dos multiplex e da política dos blockbusters, é a visão da sala cinematográfica como centro de efervescência cultural, ou melhor, contracultural. Nosso anticonformismo foi comprado, industrializado, e, como sentencia Carrard, "a possibilidade de ressurgir o lendário período dos Midnight Movies, do Elgin Theatre, infelizmente é remota".

De fato, "Eraserhead" encerrou uma época. Ele foi o último Filme da Meia-Noite.

FILMES DA MEIA NOITE

El Topo (1970), direção de Alejandro Jodorowsky.

Night of the Living Dead (1968), direção e George A. Romero.

The Harder They Come (1972), direção de Perry Henzell.

Pink Flamingos (1972), direção de John Waters.

The Rocky Horror Picture Show (1975), direção de Jim Sharman.

Eraserhead (1977), direção de David Lynch. 


Entrevistados 


Marcelo Carrard

"Jornalista graduado pela PUC de Porto Alegre, tem Mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, na Área de Cinema e Artes Plásticas onde pesquisou a Obra do Diretor britânico Peter Greenaway. Desenvolveu uma pesquisa no Inst de Artes da Unicamp sobre o Gênero Feminino nos Filmes de Mario Bava e Dario Argento. É Crítico de Cinema e Editor do Canal do YouTube: Cinema Ferox".

Fábio Rockembach

"Sou jornalista, formado em 2010, com experiência em trabalhos de layout editorial, editoria de cultura e crítica cinematográfica. Tenho especialização em Cinema e Linguagem audiovisual, e mestrado em Produção e Recepção do Texto Literário, e sou professor dos cursos de jornalismo, publicidade e artes visuais na UPF, no Rio Grande do Sul. Escrevi sobre cinema na internet ao longo dos anos 2000 em blog e exerci crítica cinematográfica no jornalismo impresso de 2007 a 2011, no interior do RS, quando abandonei as redações para dar aula. Desde 2013, larguei a crítica por me interessar mais na análise fílmica, sem juízos de valor, e pela formação crítica, atuando com alunos da UPF e professores num Núcleo de Estudos voltado a entender e discutir o cinema em todas as suas formas. Desde 2015, coordeno o projeto Ponto de Cinema, da universidade, que promove exibições e debates para a comunidade, debates temáticos, oficinas, palestras e produtos didáticos sobre cinema. Desde 2016, escrevo na Revista Moviement, online, fazendo análises audiovisuais, reviews e artigos".

Marcos Brolia

"35 anos, jornalista e redator, fanático por filmes de terror e editor do site 101 Horror Movies. O 101HM surgiu há quase cinco anos, em maio de 2012, inicialmente como um blog com uma lista de filmes de terror, e no final de 2015 ele se tornou efetivamente um site que traz não só resenhas, mas análises, artigos e demais discussões sobre o gênero, englobando filmes, livros, séries, HQs, games, etc, que tem o intuito de tratar o terror como cultura POP, com uma linguagem mais informal e até com senso de humor e sempre com extensa pesquisa - quase que acadêmica - sobre seus temas, não só voltada para um nicho específico e estereotipado de público, como praticamente todos os sites e blogs do gênero o fazem por aí".

© 2016 Doc O'Blivion - Salvador - Ba. Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Webnode Cookies
Crie seu site grátis! Este site foi criado com Webnode. Crie um grátis para você também! Comece agora