Mistérios e Paixões (1991)

15/11/2016

Naked Lunch

Drama ‧ Terror ‧ Grotesco ‧ 1h 55m ‧ 1991 ‧ David Cronenberg


ADAPTAR ALGO INADAPTÁVEL


O filme começa com uma alerta bem clara: nada é real, tudo é permitido. A citação do missionário nizarita é a que melhor traduz a falta de lógica que impregna o filme "Mistérios e Paixões" (1991).

As baratas, os alienígenas, as máquinas de escrever, o Guilherme Tell são alguns dos inúmeros nós que compõem a teia tecida pelo escritor aracnídeo da Beat Generation, William S. Burroughs, cada qual é cuidadosamente analisado pelo famoso diretor entomologista dos anos oitenta, David Cronenberg.

Todos os signos apontados pela câmara remetem a uma série de significados opostos, que servem unicamente para desviar o público das reais intenções do autor, criando assim um perverso jogo de sub-tramas escatológicas que não levam a nada.

Mesmo enxugada de seus detalhes mais absurdos, o enredo que nos sobra para desvendar alguns dos mistérios apresentados continua nos parecendo incompreensível. Os fatos se sucedem sem conexão lógica, arrastando o espectador no abismo da loucura.

Bem-Vindos a Nova York, ano 1953.

O exterminador William Lee, ex-escritor, termina o pó amarelo que lhe serve para matar as baratas. Descobrirá em um segundo momento, após um encontro com os amigos Hank e Martin, que sua esposa usa o inseticida como droga. Saindo de um bar, dois homens do serviço antidroga o levam à delegacia, acusando-o de traficar o veneno amarelo. William é relutante e os policiais, por punição, o deixam trancado na sala, em companhia de uma barata gigante. A criatura revela a verdadeira identidade de Bill Lee: ele seria um agente secreto de uma importante associação, encarregado de matar a própria esposa, Joan, acusada de ser uma espiã da Interzona. Convencido de que seja uma alucinação, o exterminador esmaga o inseto, para então fugir do local e dirigir-se, assim, a casa. Lá, com o apoio da senhora Lee, William mergulha de cabeça na droga amarela para tentar esquecer o que lhe aconteceu. Entre uma tentativa e outra de conseguir uma maior quantidade de veneno, William se esbarra em um colega que o leva ao doutor Benway, especializado em interromper ciclos viciosos com o auxílio de um segundo alucinógeno, um pó escuro obtido da carne preta de uma centopéia brasileira. Mas a tentativa de sair da droga dá errado, pois, sob o efeito do inseticida, William acaba matando Joan, após emularem o desafio de Guilherme Tell com um revólver. Em um segundo momento, tendo dialogado com uma criatura medonha chamada mugwump, o exterminador troca sua arma por uma Klarknova, uma máquina de escrever, fugindo em seguida para Tânger, também conhecida como Interzona. Lá ele encontra Hans, um alemão que quer se aproveitar do protagonista para vender o pó preto ao doutor Benway. Em seguida, conhece um casal de escritores ingleses, Tom e Joan Frost, sendo que esta é idêntica à senhora Lee não só pelo nome, como também pelos traços físicos. Por um instante, as coisas parecem ter voltado ao normal, não fosse que a Klarknova resolve se transformar em uma barata enorme que lhe dá uma nova ordem: escrever relatórios semanais sobre o que está acontecendo, fingindo-se homossexual. As coisas complicam-se assim que William, seguindo os comandos de seus superiores, é obrigado a seduzir Joan Frost para obter informações sobre o chefe da facção inimiga, envolvido no tráfico das centopéias.

Ao introduzir o elemento recorrente da conspiração, Cronenberg contagia o público com o vírus da paranóia. Logo percebemos como William Lee é alheio à realidade, pois tudo para ele é parte de um complô planetário: cada pessoa é um potencial inimigo; qualquer objeto é passível de mutações biológicas; não há discurso que não se torne revelação de alguma conjura.

As peças desse louco quebra-cabeça foram postas no chão. Caberá ao público o dever de montá-las uma de cada vez, ciente do fato de que não se encaixarão, pois os encontros de William com outros personagens nunca funcionam no sentido da evolução narrativa.

No esforço de dar uma lógica às coisas, há quem banca o papel do psicanalista, atribuindo uma significação freudiana a cada elemento. Por esse ângulo, as baratas representam a repressão sexual, causa daquela frustração que todos acreditamos ser a força motriz dos poetas malditos, enquanto as centopéias exprimem a liberdade sexual, inimiga da latente homossexualidade do nosso escritor.

Tudo parece parte de um mecanismo arquétipo próximo a funcionar, não fosse pela ausência de um centro em que possam convergir os esforços investigativos do mártir desse longa-metragem.

O filme termina deixando o espectador constrangido, com uma sensação de vazio, como se tivesse chegado ao fim de um interminável jogo de bonecas russas, uma viagem que começa por diversão e termina no vácuo. No fim das contas, o que Cronenberg fez ao transpor o "Almoço nu" de Burroughs para as telas de cinema, foi uma tentativa de adaptar algo inadaptável, de dar um sentido àquela batalha em que todos nós estamos envolvidos, desde sempre.

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